Grupo Libertat se apresenta na estação da Luz, São Paulo
Atualizado: 14 de jun. de 2022
Vozes que migram / Voces que migran, concerto do grupo Libertat em conjunto com a Pôndero, produtora audiovisual, aconteceu no saguão da estação da Luz, São Paulo, às 14 horas da última quarta-feira, 08. O grupo é o segundo a se apresentar na primeira edição do Plataforma Conexões, programa que pretende incentivar artistas iniciantes, promovido pelo Museu da Língua Portuguesa.
Às 13h30 o "charango", "chachas", "bombo leguero", "zampona", "quena"
"quenacho", "sanka", "toyoo", violoncelo e o vibrafone, já estavam dispostos no centro do saguão.
A estação de arquitetura inspirada no Big Ben e na abadia de Westminter, dois dos principais símbolos de Londres, recebia naquele dia, como de costume, o entra e sai apressado do proletariado.
Inaugurada em 1901, a estação da Luz é um dos marcos que simbolizam a chegada dos imigrantes europeus ao Brasil. Feita na I república brasileira e para “inglês ver”, personalidades ilustres do cenário europeu desembarcavam ali, por exemplo, os soberanos belgas, o rei Alberto I e a rainha Elisabeth, em 1920.
A estação, porém, está hoje entre o bairro do Bom Retiro, conhecido pela atual e significativa presença de imigrantes bolivianos e coreanos, e a feira boliviana, na ponta oposta ao bairro. O grupo Libertat, portanto, ocupou com músicas peruanas, bolivianas, paraguaias, colombianas e equatorianas, esse espaço estruturalmente europeu.
A musicista equatoriana Sandra Valenzuela e os músicos chegaram. José Giovanni, brasileiro, licenciado em música e filho de bolivianos, acomodou nos seus braços o violoncelo, que levava um lenço boliviano amarrado em sua base. Na mão direita do rapaz, estava a "chacha", instrumento que simula o barulho das águas.
Sandra, se posicionou junto ao vibrafone. Vladimir David, boliviano, começou a dedilhar os primeiros acordes no "charango" e Giovani Facchini, brasileiro, sem raízes andinas, tocou o "bombo leguero", instrumento de percussão, e os outros de sopro, como por exemplo, a "zampona" e o "quena".
Giovani, abriu o concerto convidando a plateia para uma viagem de trem pelos países que nos estão próximos, porém, distantes culturalmente.
Os músicos, então, foram os responsáveis pela trilha sonora da viagem, e a produtora ocupou os espaços entre uma música e outra, reproduzindo relatos audiovisuais curtos de imigrantes andinos que vivem em São Paulo, além de imagens de manifestações culturais.
Abriram o show com a música peruana “El condor pasa”. Na sequência os músicos silenciaram, e os olhares voltaram-se para o telão. A voz e imagem de Juan Crisóstomo Saca Cusicanki, boliviano aimará, emocionou a plateia formada pelos transeuntes que se renderam à curiosidade do imprevisto. Natural de La Paz, capital da Bolívia, Cusicanki desembarcou em 1981 na estação da Luz.
“Eu trouxe a música, cultura e costumes. Conforme o tempo vai passando formamos família, trabalhamos, mas a gente não consegue esquecer essas coisas que estão dentro da gente, no espírito. A minha língua é aimará, eu sempre falo e canto na minha língua; as músicas, danças, toda essa cultura a gente não se esquece de trazer, está sempre com a gente”, afirma Cusicanki.
O esqueleto europeu da estação parece produzir uma sensação de não pertencimento, que durante o show ficou em suspenso. Conforme os acordes e os relatos aconteciam, mais proletários escolhiam parar e assistir os jovens. Pessoas em situação de rua que rodeiam a estação da Luz, tornaram-se parte também daquele espaço; ouviam e viam a intervenção cultural.
O apagamento histórico e cultural é um fato na vida de milhares de latino americanos descendentes de africanos e indígenas. O termo histórico remete-nos ao passado, porém, esse apagamento ainda é presente.
“São Paulo é a cidade que mais recebe imigrantes no Brasil, a comunidade boliviana é a maior na cidade de São Paulo, já superou há tempos a comunidade portuguesa, e parece que a mídia e o circuito cultural promovem o apagamento do nosso povo, e quando reproduz nossa imagem, reproduz naqueles mesmos estereótipos, e eu não quero ficar apenas atrelado a isso”, diz José Giovanni enquanto segura seu violoncelo.
Atualmente personalidades indígenas como Aílton Krenak e Sônia Guajajara, por exemplo, têm ganhado espaço no cenário brasileiro, porém, segundo José, a representatividade ainda é pouca.
“Aqui em São Paulo, os povos imigrantes da Bolívia, Peru, Equador, eles também carregam esse legado indígena, mas aqui no Brasil não podem se reconhecer como tal, primeiro porque não têm direito ao voto; segundo, porque você se autodeclarar indígena, demanda uma burocracia enorme: você precisa ir até a FUNAI, e essa instituição tem que te dizer por meio de um Xamã, de qual etnia você pertence, só que isso não é a regra para todos os povos originários indígenas da América Latina. Então a gente chega aqui e não pode se autodeclarar como indígena, temos que nos autodeclarar como pardos ou não declarar a nossa cor”, diz José Giovanni.
Cusicanki defende que todas as famílias deveriam saber suas origens, porque sabê-las promove impacto direto nas suas existências.
“Temos a necessidade de saber de onde a gente vem, porque isso dá um norte, a vida fica mais simples. Saber o que aconteceu na vida dos meus antepassados, momentos felizes e tristes, sempre me trouxe coisas boas. Nós agradecemos esse lugar e momento, e cuidamos daqui como se fosse a nossa mãe, chamamos de "pachamama", “mãe-terra”, e é nesse lugar que nós vivemos por esse momento”, afirma Cusikanki.
O grupo Libertat começou quando José Giovanni era artista-educador no Programa Vocacional, promovido pela Divisão de Formação Artística e Cultural (DIVFORM), da Prefeitura de São Paulo.
A série de vídeos “encuentros en movimiento”, disponível no “Programa Vocacional - Norte 1”, canal do YouTube, feita em parceria com a produtora Pôndero, foi o pontapé inicial para a formação do quarteto.
“Um dos vídeos, era uma proposta com esse grupo. Nós não nos conhecíamos, e nos juntamos para discutir o folclore, porque na academia brasileira o termo ‘folclore’, é muito pejorativo: não se pode falar ‘folclore’, porque é um termo do colonizador para diminuir a nossa cultura, e até certo ponto é verdade, porém, atualmente muitos grupos aqui em São Paulo estão ressignificando o termo folclore”, diz José.
A partir do encontro, o projeto do grupo Libertat e da produtora Pôndero começou a ser desenhado. No final do ano passado, o Idbrasil cultura, educação e esporte, entidade gestora do Museu da Língua Portuguesa, publicou o “edital de credenciamento de oficinas e apresentações artísticas”.
Segundo o edital, cada um dos oito selecionados têm direito a um valor de R$ 7.500 para arcar com gastos como cachês, transporte e hospedagem, por exemplo, a considerar a apresentação presencial.
Os próximos eventos estão programados para acontecer entre junho e dezembro de 2022, sempre no saguão da Estação da Luz, em São Paulo.
Segundo o músico, o folclore é um pouco do legado cultural que os imigrantes trazem quando migram para o Brasil, é uma forma de não esquecer a origem.
“O folclore também é um meio da gente falar: estamos presentes, estamos aqui resistindo nessa estrutura social que a sociedade nos colocou, mas não esquecemos que a nossa cultura é viva, e não podemos nos esquecer jamais disso, o nome do grupo vem disso”, afirma José.
O nome do grupo é “Libertat”, com “t” no final. O neologismo une “liberdad” (liberdade), e habitat. Libertat, portanto, busca liberdade de ser e habitar onde quer que seja, explicou o músico José Giovanni.
Tanto o violoncelo como o vibrafone, foram usados em todas as músicas. Indagado sobre a presença desses instrumentos de origem europeia na apresentação, o jovem músico respondeu que a proposta do grupo é a decolonialidade, ou seja, trabalhar com todas as linguagens possíveis.
“Libertat não só para ocupar espaço, mas também para inter dialogar entre linguagens, porque a minha proposta artística e política, é trabalhar com decolonialidade. Essa proposta não quer propor uma hegemonia em contraposição à hegemonia existente, queremos trabalhar o todo. Nós somos filhos desse paradoxo, que é a miscigenação e a colonização, e por isso nós estamos presentes em tudo isso”, afirma José.
O evento durou, em média, uma hora e trinta, e foram tocadas sete músicas, sendo uma cantada. Sandra cantou "vasija de barro", do Equador. Nesta canção o David usou o "ronroco", instrumento de corda parecido ao "charango", porém, mais grave.
O antigo jovem rapaz que desembarcara na estação da Luz há quarenta anos atrás, não conteve nos olhos e nos ouvidos o entusiasmo de ver-se representado ali na estação que o recebeu. Com um lenço a girar na mão direita, Juan Cusicanki dançou "cueca", uma mistura de estilos afroindígenas e espanhóis.
Cusicanki mostrou para todos que ali estavam que “a gente não consegue esquecer essas coisas que estão dentro da gente, no espírito”.
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